Os pais e a vocação dos filhos
Quem ama o seu pai ou a sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama o seu filho ou a sua filha mais do que a mim não é digno de mim, lemos no Evangelho da Missa1. Quando decidimos livremente seguir a Deus por completo, entendemos que os outros planos devem ceder: pai, mãe, noivo, noiva… O chamamento de Deus vem em primeiro lugar, e todas as outras coisas devem ficar em segundo plano.
As palavras de Jesus não implicam nenhuma oposição entre o primeiro e o quarto mandamentos, mas assinala a ordem que se deve seguir. Devemos amar a Deus com todas as nossas forças através da peculiar vocação recebida dEle; e também devemos amar e respeitar – na teoria e na prática – os pais que Deus nos deu, com quem temos uma dívida tão grande. Mas o amor aos pais não pode antepor‑se ao amor a Deus.
Geralmente, não há razão para que surja uma oposição entre ambos, mas se em algum caso chega a dar‑se, será necessário lembrar‑se daquelas palavras de Cristo adolescente no Templo de Jerusalém: Por que me buscáveis? Não sabíeis que devo ocupar‑me nas coisas de meu Pai?2 É a resposta de Jesus a Maria e a José, que o procuravam angustiados, e que constitui um ensinamento para os filhos e para os pais: para os filhos, porque devem aprender que não se pode antepor o carinho familiar ao amor de Deus, especialmente quando o Senhor pede um seguimento de entrega total; para os pais, porque devem ser conscientes de que os seus filhos são acima de tudo de Deus, e que Ele tem direito a dispor deles, ainda que por vezes isso implique um grande sacrifício para os pais3.
Triste decisão seria a daquele que fizesse ouvidos surdos a Deus para não causar um desgosto aos pais, e mais triste consolo seria nesse caso o dos pais, pois, como diz São Bernardo, “o seu consolo é a morte do filho”4. Dificilmente poderiam causar‑lhe maior mal.
Só se pode seguir o Senhor com a liberdade que nasce do desprendimento pleno: com uma liberdade de coração que não se enreda em melancolias e saudades, em frouxos sentimentos que conduzem a uma entrega a Deus pela metade. Nada se ganha com uma decisão a meias, com um coração dividido.
Pode acontecer em alguns casos que a decisão de seguir o Senhor por inteiro não seja compreendida pelos próprios parentes: porque não a entendem, porque tinham forjado outros planos, legítimos, ou porque não querem aceitar a parte de renúncia que lhes cabe. O filho ou filha a quem Deus chama deve contar com isso, e, ainda que a sua correspondência a esse chamamento divino cause dor aos pais, deve compreender que a fidelidade à sua vocação é o maior bem para ele ou para ela e para toda a família. Em qualquer circunstância, sendo muito firme em seguir o seu próprio caminho, tem de querer aos seus pais muito mais do que antes da chamada; deve rezar muito por eles, para que compreendam que “não é um sacrifício, para os pais, que Deus lhes peça os filhos; nem, para aqueles que o Senhor chama, é um sacrifício segui‑lo.
“Pelo contrário, é uma honra imensa, um orgulho grande e santo, uma prova de predileção, um carinho particularíssimo, que Deus manifestou num momento concreto, mas que estava na sua mente desde toda a eternidade”5. É a maior honra que o Senhor pode conceder a uma família, uma das maiores bênçãos.
II. QUEM ENTREGOU o seu coração por completo ao Senhor, recupera‑o mais jovem, mais engrandecido e mais limpo, para amar a todos. O amor aos pais, aos irmãos…, passa então pelo Coração de Cristo e daí sai profundamente enriquecido.
São Tomás sublinha que Tiago e João são louvados por terem seguido o Senhor abandonando o pai, e que não o fizeram porque este os incitasse ao mal, mas porque “consideraram que o seu pai poderia passar a vida de outro modo, seguindo eles o Senhor”6. O Mestre passou pela vida deles, chamou‑os, e a partir desse momento todas as outras coisas ficaram em segundo plano. No Céu, os pais terão uma glória especial, fruto em boa parte da correspondência dos seus filhos à chamada de Deus: a vocação é um bem e uma bênção para todos.
A vocação é iniciativa divina; Ele sabe muito bem o que é melhor para aquele que foi chamado e para a respectiva família. Muitos pais aceitam incondicionalmente e com alegria a vontade de Deus para os seus filhos, e dão graças quando algum deles é chamado a seguir o Senhor por toda a vida; outros adotam atitudes muito diferentes, alimentadas por vários motivos: lógicos e compreensíveis uns, com laivos de egoísmo outros.
Com a desculpa de que os filhos são muito novos – para seguirem a chamada de Deus, não para tomarem outras decisões que comprometem – ou de que ainda não têm a necessária experiência da vida, deixam‑se levar pela grave tentação a que aludia Pio XI: “Mesmo entre aqueles que se orgulham da fé católica, não faltam muitos pais que não se conformam com a vocação dos filhos, e combatem sem escrúpulos a chamada divina com todo o tipo de argumentos, até com meios que podem pôr em perigo, não só a vocação para um estado de vida mais perfeito, mas a própria consciência e a salvação eterna dos que deviam ser‑lhes tão queridos”7.
Esquecem que eles são “colaboradores de Deus”, e que é lei da vida que os filhos deixem o lar paterno para formarem por sua vez um novo lar, ou simplesmente que o façam por razões de trabalho, de estudo. E não lhes acontece nenhuma desgraça. E há casos em que são as próprias famílias que fomentam essa separação para o bem dos filhos. Por que hão de pôr obstáculos ao seguimento de Cristo? Ele “jamais separa as almas”8.
III. OS BONS PAIS sempre desejam o melhor para os seus filhos. São capazes de realizar os maiores sacrifícios pelo bem humano de cada um deles. E, é claro, pelo seu bem espiritual. Sacrificam‑se para que cresçam cheios de saúde, para que progridam nos estudos, para que tenham bons amigos, para que vivam conforme o querer de Deus e levem uma vida honrada e cristã. Para isso Deus os chamou ao matrimônio; a educação dos filhos é um querer expresso de Deus nas suas vidas; é de lei natural.
No Evangelho encontramos muitos pedidos em favor dos filhos: uma mulher que segue Jesus com perseverança para que lhe cure a filha9, um pai que lhe suplica que expulse o demônio que atormenta o seu filho10, o chefe da sinagoga de Cafarnaum, Jairo, que espera com impaciência o Senhor, porque a sua filha única de doze anos está a ponto de morrer11… É exemplar a decisão com que a mãe de Tiago e João se aproxima de Cristo para lhe pedir uma coisa que eles não se atreviam a pedir. Sem pensar em si mesma, aproximou‑se de Jesus, adorou‑o e pediu‑lhe uma graça12. Quantas mães e quantos pais ao longo dos séculos têm pedido para os seus filhos bens e favores que jamais se atreveriam a pedir para si próprios!
Os pais devem pedir o melhor para os seus filhos, e o melhor é que sigam a chamada divina com que Deus os abençoou. Este é o grande segredo para serem felizes na terra e chegarem ao Céu, onde os espera uma bem‑aventurança sem limites e sem fim. Do ponto de vista de cada chamada considerada em si mesma, não há dúvida de que a castidade no celibato por amor a Deus é a vocação mais excelsa de todas. “A Igreja, durante toda a sua história, defendeu sempre a superioridade deste carisma – da virgindade ou celibato – em comparação com o do matrimônio, por causa do vínculo singular que o prende ao Reino de Deus”13.
Quantas vocações para uma entrega plena não concedeu Deus aos filhos em atenção à generosidade e à oração dos pais! Mais ainda: o Senhor serve‑se normalmente dos próprios pais para criar um clima idôneo em que possa vingar e desenvolver‑se nos filhos o germe da vocação: “Os cônjuges cristãos – afirma o Concílio Vaticano II – são um para o outro, para os filhos e para os demais familiares, cooperadores da graça e testemunhas da fé. Para os filhos, são eles os primeiros anunciadores e educadores da fé. Formam‑nos para a vida cristã e apostólica pela palavra e pelo exemplo. Ajudam‑nos com prudência na escolha da vocação e fomentam com todo o esmero a vocação sagrada quando a descobrem neles”14. Não podem ir mais longe, pois não lhes compete discernir se os filhos têm ou não vocação; devem unicamente formar‑lhes bem a consciência e ajudá‑los a descobrir o seu caminho, sem lhes forçar a vontade.
Uma vocação no seio de uma família significa uma especial confiança e predileção do Senhor para com todos. É um privilégio, que é necessário proteger – especialmente mediante a oração – como um grande tesouro. Deus abençoa a mãos cheias o lar em que nasceu uma vocação fiel: “Não é sacrifício entregar os filhos ao serviço de Deus; é honra e alegria”15.
(1) Mt 10, 34; 11, 1; (2) Lc 2, 49; (3) cfr. Sagrada Bíblia, Santos Evangelhos, notas a Mt 10, 34‑37 e Lc 2, 49; (4) São Bernardo, Epístola, 3, 2; (5) Josemaría Escrivá, Forja, n. 18; (6) São Tomás, Suma Teológica, II‑II, q. 101, a. 4, ad. 1; (7) Pio XI, Enc. Ad catholici sacerdotii, 20‑XII‑1935; (8) cfr. Josemaría Escrivá, Sulco, n. 23; (9) Mt 15, 21‑28; (10) Mt 17, 14‑20; (11) Mt 9, 18‑26; (12) Mt 20, 20‑21; (13) João Paulo II, Exort. Apost. Familiaris consortio, 22‑XI‑1981, n. 16; (14) Conc. Vat. II, Decr. Apostolicam actuositatem, 11; (15) Josemaría Escrivá, Sulco, n. 22.
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