Festa de São Tiago Maior Apóstolo
São Tiago era natural de Betsaida, filho de Zebedeu e irmão de São João. Foi um dos três discípulos que estiveram presentes na Transfiguração, na agonia do Getsêmani e em outros acontecimentos importantes da vida pública de Jesus. Foi o primeiro Apóstolo que morreu por pregar a mensagem salvadora de Cristo. A sua energia e firmeza fizeram que o Senhor o chamasse filho do trovão. A sua atividade apostólica desenvolveu-se na Judéia e na Samaria e, segundo uma venerável tradição, levou-o até à Espanha. Retornando à Palestina, sofreu o martírio por volta do ano 44, por ordem de Herodes Agripa. Os seus restos mortais foram trasladados para Santiago de Compostela, centro de peregrinação durante a Idade Média e foco de fé para toda a Europa.
I. CAMINHANDO JESUS ao longo do mar da Galiléia, viu Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, que consertavam as redes; e chamou-os e deu-lhes o nome de “Boanerges”, que quer dizer “filhos do trovão”1.
“Tudo começou quando alguns pescadores do lago de Tiberíades foram chamados por Jesus de Nazaré. Acolheram a chamada, seguiram-no e viveram com Ele aproximadamente três anos. Participaram da sua vida cotidiana, foram testemunhas da sua pregação, da sua bondade misericordiosa com os pecadores e com os que sofriam, do seu poder. Escutaram atentos a sua palavra, uma palavra jamais ouvida”. Durante esse tempo, os discípulos tiveram conhecimento “de uma realidade que, desde então, os possuiria para sempre: a experiência da vida com Jesus. Foi uma experiência que rompeu a trama da existência anterior; tiveram que deixar tudo: a família, a profissão, os bens. Foi uma experiência que os introduziu numa nova maneira de existir”2.
Um dia, o convidado a seguir Jesus foi Tiago, irmão de João e filho de Salomé, uma das mulheres que serviam o Senhor com os seus bens e que estaria presente no Calvário. O Apóstolo conhecia Jesus antes de Ele o ter chamado definitivamente, e gozou da sua predileção juntamente com Pedro e seu irmão: esteve presente no Tabor3, presenciou o milagre da ressurreição da filha de Jairo e foi um dos três que o Mestre tomou consigo para que o acompanhassem no Horto das Oliveiras4, no começo da Paixão. Pelo seu zelo impetuoso, Tiago e seu irmão receberam do Senhor a alcunha de Boanerges, filhos do trovão.
O Evangelho da Missa narra-nos um acontecimento singular da vida deste Apóstolo. Jesus acabava de anunciar que se aproximava o momento da sua Paixão e Morte em Jerusalém: Eis que subimos a Jerusalém – disse-lhes –, e o Filho do homem será entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas, que o condenarão à morte e o entregarão aos gentios para ser escarnecido, açoitado e crucificado; mas ao terceiro dia ressuscitará5. O Mestre sente necessidade de compartilhar com os seus discípulos esses sentimentos que embargam a sua alma. Nessa altura, aproximou-se dele a mãe dos filhos de Zebedeu com os seus filhos, e prostrou-se para pedir-lhe alguma coisa6. Pede-lhe que reserve para os filhos dois lugares de importância no novo reino cuja chegada parecia iminente. Jesus dirige-se aos irmãos e pergunta-lhes se podem partilhar com Ele o seu cálice, o seu mesmo destino. Oferecer a taça própria a outra pessoa era considerado na Antigüidade como uma grande prova de amizade. Eles responderam: Podemos7. “Era a palavra da disponibilidade, da força; uma atitude que é própria não só de pessoas jovens, mas de todos os cristãos, especialmente de todos os que aceitam ser apóstolos do Evangelho”8. Jesus aceita a resposta generosa dos dois discípulos e diz-lhes: Efetivamente, haveis de beber o meu cálice, participareis dos meus sofrimentos, completareis em vós a minha Paixão. Alguns anos mais tarde, por volta do ano 44, Tiago morreria decapitado por ordem de Herodes9, e João seria provado com inúmeros padecimentos e perseguições ao longo da sua vida.
Desde que Cristo nos redimiu na Cruz, todo o sofrimento cristão consistirá em beber o cálice do Senhor, em participar da sua Paixão, Morte e Ressurreição. Por meio das nossas dores, completamos de certo modo a Paixão de Cristo10, que se prolonga no tempo, com os seus frutos salvíficos. A dor humana torna-se redentora, porque se acha associada à que o Senhor padeceu. É o mesmo cálice de que Ele, na sua misericórdia, nos faz participar. Perante as contrariedades, a doença, a dor, Jesus faz-nos a mesma pergunta: Podeis beber o meu cálice?E nós, se estivermos unidos a Ele, saberemos responder-lhe afirmativamente, e acolheremos com paz e alegria aquilo que humanamente não é agradável. Com Cristo, até a dor e o fracasso se convertem em gozo e em paz. “Esta foi a grande revolução cristã: converter a dor em sofrimento fecundo; fazer, de um mal, um bem. Despojamos o diabo dessa arma…; e, com ela, conquistamos a eternidade”11.
II. NO ESPAÇO DE TEMPO que transcorreu entre o momento em que Tiago manifestou as suas ambições – não inteiramente nobres – e o seu martírio, tem lugar um longo processo interior. O próprio zelo do Apóstolo, dirigido contra aqueles samaritanos que não tinham querido receber Jesus por dar a impressão de ir para Jerusalém12, transformar-se-á mais tarde em ânsia de almas. Pouco a pouco, sem perder a sua própria personalidade, Tiago irá aprendendo que o zelo pelas coisas de Deus não pode ser áspero nem violento, e que a única ambição que vale a pena é a glória de Deus. Conta São Clemente de Alexandria que, quando o Apóstolo era levado ao tribunal onde ir ser julgado, foi tal a sua inteireza que o seu acusador se aproximou dele para lhe pedir perdão. São Tiago refletiu… Depois, abraçou-o dizendo: “A paz esteja contigo”; e os dois receberam a palma do martírio13.
Ao meditarmos hoje sobre a vida do Apóstolo, serve-nos de grande ajuda considerarmos os seus defeitos, bem como os dos outros Onze que o Senhor tinha escolhido. Não eram poderosos, nem sábios, nem simples. Vemo-los às vezes ambiciosos, discutidores14, com pouca fé15. Mas, a par dessas deficiências e falhas, tinham uma alma e um coração grandes. São Tiago será o primeiro Apóstolo mártir16. Tanto pôde a graça divina naquele coração generoso, que o levou a enveredar por caminhos bem diversos dos que ele tinha sonhado e pedido.
O Mestre sempre foi paciente com Tiago e com todos, e contou com o tempo para ensiná-los e formá-los com uma sábia pedagogia divina. “Observemos – escreve São João Crisóstomo – como a maneira de o Senhor os interrogar equivale a uma exortação e a um aliciante. Não diz: “Podeis suportar a morte? Sois capazes de derramar o vosso sangue?” As suas palavras são: Podeis beber o cálice? E, para animá-los a dar o passo, acrescenta: …que eu irei beber? Deste modo, a consideração de que se tratava do mesmo cálice que o Senhor iria beber havia de estimulá-los a uma resposta mais generosa. E chama à sua Paixão batismo, mostrando assim que os seus sofrimentos haviam de ser causa de uma grande purificação para o mundo inteiro”17.
O Senhor também nos chamou a cada um de nós. Não nos deixemos invadir pelo desalento se alguma vez as nossas fraquezas e defeitos se tornam patentes. Se recorrermos a Jesus, Ele nos dará ânimos para seguirmos adiante com humildade, mais fielmente. O Senhor tem paciência também conosco, e conta com o tempo.
III. NA SEGUNDA LEITURA da Missa, São Paulo recorda-nos: Trazemos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que se veja que a superioridade da virtude é de Deus, e não nossa18. Somos algo quebradiço e pouco resistente, que no entanto pode conter um tesouro de incomparável valor, porque Deus realiza maravilhas nos homens, apesar das suas debilidades. E precisamente para que se veja que é Ele quem atua e dá a eficácia, escolheu as coisas fracas segundo o mundo para confundir as fortes; e as coisas vis e desprezíveis segundo o mundo, e aquelas que não são, para destruir as que são, a fim de que nenhum homem se vanglorie na sua presença19. Isto escreve aquele que outrora perseguira a Igreja. Ao trazermos Deus nas nossas almas, podemos viver ao mesmo tempo “no Céu e na terra, endeusados; mas sabendo que somos do mundo e que somos terra, com a fragilidade própria do que é terra: um pote de barro que o Senhor se dignou aproveitar para o seu serviço. E quando se quebrou, recorremos aos grampos, como o filho pródigo: Pequei contra o Céu e contra Ti…”20, a esses grampos que se punham antigamente nos vasos que se quebravam, para que continuassem a ser úteis.
Deus torna eficazes os que têm a humildade de sentir-se como um vaso de argila, os que trazem no seu corpo a mortificação de Jesus21, os que bebem o cálice da Paixão, que o Senhor bebeu e convidou São Tiago a beber.
Diz-nos a tradição que este Apóstolo pregou o Evangelho na Espanha. A sua ânsia de almas levou-o ao extremo do mundo então conhecido. A mesma tradição fala-nos das dificuldades que encontrou nessas terras nos começos da sua evangelização, e como Nossa Senhora lhe apareceu em carne mortal para animá-lo. É possível que também nós sejamos assaltados pelo desalento numa ou noutra ocasião, e que nos sintamos um pouco abatidos diante dos obstáculos que dificultam os nossos desejos de levar outras almas a Cristo. Podemos até encontrar incompreensões, zombarias, oposições. Mas Jesus não nos abandona. Recorreremos a Ele, e poderemos dizer com São Paulo: Estamos cercados de dificuldades, mas não desesperamos; somos afligidos, mas não nos sentimos desamparados; somos acossados, mas não perecemos…22 E recorreremos a Santa Maria, e nEla, como o Apóstolo São Tiago, encontraremos sempre alento e alegria para prosseguirmos o nosso caminho.
(1) Cfr. Mt 4, 18; Antífona de entrada da Missa do dia 25 de julho; (2) C. Caffarra, Vida em Cristo, EUNSA, Pamplona, 1988, págs. 19-20; (3) Mt 17, 1 e segs.; (4) Mt 26, 37; (5) Mt 20, 17-19; (6) Mt 20, 20; (7) Mt 20, 22; (8) João Paulo II, Homilia em Santiago de Compostela, 9-XI-1982; (9) At 12, 2; (10) cfr. Col 1, 24; (11) Josemaría Escrivá, Sulco, n. 887; (12) Lc 9, 53; (13) cfr. Clemente de Alexandria, Hypotyp, VII, citado por Eusébio, História eclesiástica, 11, 9; (14) Lc 22, 24-27; (15) Mt 14, 31; (16) cfr. At 12, 2; (17) Liturgia das Horas, Segunda Leitura. São João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de São Mateus, 65, 3-4; (18) 2 Cor 4, 7; (19) 1 Cor 1, 27-29; (20) S. Bernal, Perfil do Fundador do Opus Dei, Quadrante, São Paulo, 1977, pág. 420; (21) 2 Cor 4, 10; cfr. Segunda leitura da Missa do dia 25 de julho; (22) 2 Cor 4, 8; Segunda leitura da Missa do dia 25 de julho.
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