Memória de Santo Inácio de Loyola
I. SANTO INÁCIO DE LOYOLA conta na sua Autobiografia que, “até os vinte e seis anos de idade, foi um homem dado às vaidades do mundo, que se deleitava principalmente no exercício das armas, com um grande e vão desejo de conquistar honras”1. Ferido numa perna quando defendia a cidade de Pamplona, foi levado para a sua terra natal numa maca e esteve a ponto de morrer; depois de uma longa convalescença, recuperou a saúde. Nesse tempo, “e porque era muito dado a ler livros mundanos e falsos, que costumam chamar-se de cavalaria, sentindo-se curado, pedia que lhe dessem alguns deles para passar o tempo. Mas naquela casa não se encontrou nenhum dos que costumava ler, e assim deram-lhe uma Vita Christi e um livro da vida dos santos em língua romance”2. Ganhou gosto por essas leituras, refletiu sobre elas durante o tempo em que teve de continuar de cama, e “lendo a vida de Nosso Senhor e dos santos, detinha-se a pensar consigo: – Que aconteceria se eu fizesse isto que fez São Francisco, e isto que fez São Domingos? – E assim discorria sobre muitas coisas que achava boas…”3
Alegrava-se quando se decidia a seguir a vida dos santos e entristecia-se quando abandonava esses pensamentos. “E alcançada não poucas luzes desta lição, começou a pensar mais seriamente na sua vida passada, e quanta necessidade tinha de fazer penitência”4. Assim, pouco a pouco, Deus foi-se introduzindo na sua alma, e, de cavaleiro valoroso de um senhor desta terra, passou a “heróico cavaleiro do Rei Eterno, Jesus Cristo. A ferida que sofrera em Pamplona, a longa convalescença em Loyola, as leituras, a reflexão e a meditação sob o influxo da graça, os diversos estados de ânimo pelos quais o seu espírito passava, produziram nele uma conversão radical: dos sonhos de uma vida mundana para uma plena consagração a Cristo, que aconteceu aos pés de Nossa Senhora de Montserrat e amadureceu no retiro de Manresa”5.
O Senhor valeu-se da leitura espiritual para a conversão de Santo Inácio. E assim sucedeu na vida de muitos outros: Deus penetrou em muitas almas por meio de um bom livro. Verdadeiramente, “a leitura tem feito muitos santos”6. Nela encontramos uma grande ajuda para a nossa formação e para o nosso colóquio diário com Deus. “Na leitura – escreves – preparo o depósito de combustível. Parece um montão inerte, mas é dali que muitas vezes a minha memória tira espontaneamente material, que enche de vida a minha oração e inflama a minha ação de graças depois de comungar”7. Um livro de leitura espiritual bem escolhido é um grande amigo, do qual custa separar-nos porque nos mostra o caminho que conduz a Deus e nos anima e ajuda a percorrê-lo.
II. A LEITURA ESPIRITUAL é um dos meios mais importantes para adquirirmos boa doutrina, útil tanto para alimentarmos a nossa piedade como para darmos a conhecer a fé num mundo dominado por uma profunda ignorância.
Freqüentemente, na nossa conversa diária com amigos, parentes, conhecidos, percebemos que desconhecem as noções mais elementares da fé e os critérios mais fundamentais para avaliar os problemas do mundo. Infelizmente, continua a ser atual o que escrevia São João Crisóstomo nos primeiros séculos do cristianismo, lamentando a ignorância religiosa de muitos cristãos da sua época: “Às vezes, acontece – escreve o Santo – que consagramos todo o nosso esforço a coisas, não só supérfluas, mas até inúteis ou prejudiciais, enquanto se abandona e se despreza o estudo da Escritura. Os que se excitam até o excesso com as competições hípicas podem dizer rapidamente o nome, a filiação, a raça, a nação, o nome do treinador, a idade dos animais, a sua velocidade de corrida e quem com quem, se fizessem parelha, conseguiria a vitória; e que cavalos, entre estes ou aqueles, se participassem da corrida e se fossem montados por tal ginete, venceriam a prova… Se, pelo contrário, nos perguntamos quantas são as Epístolas de São Paulo, nem sequer sabemos dizer o seu número”8. O Senhor insta-nos a iluminar com a doutrina católica a escuridão e a cegueira de tantos que ignoram por completo as verdades fundamentais da fé e da moral.
Quando são tantas as publicações, as imagens que recebemos a cada passo, e que por si mesmas não nos aproximam de Deus e muitas vezes tendem a afastar-nos dEle, vemos como é imprescindível que tenhamos uns momentos de reflexão suscitados por uma leitura adequada, que nos recorde o nosso fim último, o sentido da vida e dos acontecimentos à luz dos ensinamentos da Igreja9.
Um bom livro pode chegar a ser um excelente amigo “que nos põe diante dos olhos os exemplos dos santos, condena a nossa indiferença, recorda-nos os juízos de Deus, fala-nos da eternidade, dissipa as ilusões do mundo, responde aos falsos pretextos do amor próprio, proporciona-nos os meios necessários para resistirmos às nossas paixões desordenadas. É um monitor discreto que nos põe secretamente de sobreaviso, um amigo que nunca nos engana…”10 Podemos aplicar à leitura as palavras que a Escritura reserva para uma boa amizade: podemos dizer que, quando encontramos um bom livro, achamos um tesouro11. Em muitos casos, uma boa leitura espiritual pode ser decisiva na vida de uma pessoa, como aconteceu na vida de Santo Inácio de Loyola e na de tantos cristãos.
III. VIM TRAZER FOGO à terra, diz o Senhor, e que quero senão que se ateie!12
Para espalharmos o fogo do amor a Deus pelo mundo, devemos tê-lo no coração, como Santo Inácio o teve. E a leitura espiritual dá-nos luzes para progredirmos na vida interior, propõe-nos exemplos vivos de virtude, acende-nos em desejos de amor e é uma grande ajuda para a oração, além de ser um meio excelente para uma boa formação doutrinal.
Os Santos Padres dão-nos ensinamentos freqüentes e concretos sobre a leitura espiritual. São Jerônimo, por exemplo, aconselha que se leiam diariamente uns versículos da Sagrada Escritura, bem como “escritos espirituais de homens doutos, cuidando, no entanto, de que sejam autores de fé segura, porque não se pode procurar ouro no meio do lodo”13. A leitura espiritual deve ser feita com livros cuidadosamente escolhidos, de modo que constitua com toda a segurança o alimento de que a nossa alma necessita conforme as suas circunstâncias pessoais. Neste caso, como em tantos outros, a ajuda que recebemos na direção espiritual pode ser inestimável. Em geral, mais do que ir à busca de obras que apresentem novos problemas teológicos (que provavelmente só interessarão a especialistas da ciência teológica), o que é preciso é escolher livros que ilustrem os fundamentos da doutrina comum, que exponham claramente o conteúdo da fé, que nos ajudem a contemplar a vida de Jesus Cristo.
Para tirarmos proveito da leitura espiritual – às vezes, será suficiente dedicar-lhe quinze minutos diários, incluindo alguns versículos do Novo testamento –, será necessário lermos devagar, com atenção e recolhimento, “detendo-nos a considerar, ruminar, pensar e saborear as verdades que nos tocam mais de perto, para gravá-las mais profundamente na alma e delas tirar atos e afetos”14 que nos levem a amar mais a Deus. São Pedro de Alcântara costumava dar um conselho parecido: a leitura “não deve ser apressada nem corrida, mas atenta e pausada; aplicando-lhe não só a inteligência para entender o que se lê, mas muito mais a vontade para saborear o que se entende. E quando encontrarmos alguma passagem mais devota, detenhamo-nos um pouco mais nela para melhor senti-la”15.
A leitura é muito mais proveitosa quando feita com continuidade, com o mesmo livro; pode ser útil levá-lo conosco quando nos ausentamos nos fins de semana, nalguma viagem profissional, etc., como fazemos com outros objetos, talvez mais volumosos e menos úteis. Em determinadas épocas, poderá ser-nos também muito útil “voltar a ler as obras que em outras épocas fizeram bem à nossa alma. A vida é curta; por isso devemos contentar-nos com ler e reler aqueles escritos que verdadeiramente trazem gravada a marca de Deus, e não perder o tempo em leituras de coisas sem vida e sem valor”16.
Pedimos a Santo Inácio que nos ajude do Céu a tirar abundante proveito da nossa leitura espiritual e que converta o nosso coração para um maior serviço a Deus.
(1) Santo Inácio de Loyola, Autobiografia, em Obras completas, BAC, Madrid, 1963, I, 1; (2) ib., I, 5; (3) ib., I, 7; (4) ib., I, 9; (5) João Paulo II, Mensagem para o Ano Inaciano, 31-VII-1990; (6) cfr. Josemaría Escrivá, Caminho, n. 116; (7) ib., n. 117; (8) São João Crisóstomo, Homilias sobre algumas passagens do Novo Testamento, 1, 1; (9) cfr. E. Boylan, El amor supremo, Rialp, Madrid, 1963, pág. 181 e segs.; (10) Berthier, cit. por A. Royo Marin em Teología de la perfección cristiana, 4ª ed., BAC, Madrid, 1962, pág. 737; (11) cfr. Ecl 6, 14; (12) Lc 12, 49; Antífona da Comunhão da Missa do dia 31 de julho; (13) São Jerônimo, Epístola 54, 10; (14) São João Eudes, Royaume de Jésus, II, 15, 196; (15) São Pedro de Alcântara, Tratado da oração e meditação, I, 7; (16) R. Garrigou-Lagrange, Las tres edades de la vida interior, Palabra, Madrid, 1982, vol. I, pág. 291.Subscrição
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