Contemplar a Paixão de Cristo | 5ª semana da Quaresma – 5ª feira
Ó MEU POVO, que te fiz eu, em que te contristei? Responde-me. Eu te dei de beber a água salvadora que brotou do rochedo; tu me deste de beber fel e vinagre. Ó meu povo, que te fiz eu…?1
A liturgia destes dias aproxima-nos do mistério fundamental da nossa fé: a Ressurreição do Senhor. Se todo o ano litúrgico se centra na Páscoa, este tempo da Quaresma “exige de nós uma maior devoção, dada a sua proximidade com os sublimes mistérios da misericórdia divina”2. “Mas não devemos percorrer com excessiva pressa esse caminho; não devemos deixar cair no esquecimento uma coisa muito simples, que talvez nos escape de vez em quando: é que não poderemos participar da Ressurreição do Senhor se não nos unirmos à sua Paixão e à sua Morte (cfr. Rom VIII, 17). Para acompanharmos Cristo na sua glória, no fim da Semana Santa, é preciso que penetremos antes no seu holocausto e nos sintamos uma só coisa com Ele, morto no Calvário”3. Por isso, durante estes dias, acompanhemos Jesus com a nossa oração, na sua via dolorosa e na sua morte na Cruz. E enquanto lhe fazemos companhia, não esqueçamos que nós fomos protagonistas daqueles horrores, porque o Senhor carregou com os nossos pecados4, com cada um deles. Fomos resgatados do jugo do demônio e da morte eterna por um grande preço5, o Sangue de Cristo.
O costume de meditar a Paixão tem a sua origem nos próprios começos do cristianismo. Muitos dos fiéis de Jerusalém da “primeira hora” deviam guardar uma lembrança inesquecível dos padecimentos de Jesus, pois tinham estado presentes no Calvário. Jamais esqueceriam a passagem de Cristo pelas ruas da cidade na véspera daquela Páscoa. Os evangelistas dedicaram uma boa parte dos seus escritos à narração detalhada daqueles acontecimentos. “Leiamos constantemente a Paixão do Senhor, recomendava São João Crisóstomo. Que grande lucro, quanto proveito tiraremos! Porque, ao contemplá-Lo sarcasticamente adorado, com gestos e atos, e feito alvo de zombarias, e depois de tudo esbofeteado e submetido aos últimos tormentos, mesmo que sejas mais duro do que uma pedra, ficarás mais mole do que a cera e expulsarás da tua alma toda a soberba”6. Muitos se converteram meditando atentamente a Paixão do Senhor.
São Tomás de Aquino dizia: “Basta a Paixão de Cristo para servir de guia e modelo para toda a nossa vida”7. Conta-se que, visitando um dia São Boaventura, o “Doutor Angélico” lhe perguntou de que livros tinha ele tirado a doutrina tão boa que expunha nas suas obras. São Boaventura mostrou-lhe um Crucifixo já enegrecido pelos muitos beijos que lhe tinha dado e disse-lhe: “Este é o livro que me dita tudo o que escrevo; o pouco que sei, aprendi-o aqui”8. Nele, os santos aprenderam a sofrer e a amar de verdade. Nele devemos nós aprender. “O teu Crucifixo. – Como cristão, deverias trazer sempre contigo o teu Crucifixo. E colocá-lo sobre a tua mesa de trabalho. E beijá-lo antes de te entregares ao descanso e ao acordar. – E quando o pobre corpo se rebelar contra a tua alma, beija-o também”9.
II. “NA MEDITAÇÃO, a Paixão de Cristo sai do marco frio da história ou da consideração piedosa, para se apresentar diante dos olhos, terrível, opressiva, cruel, sangrante…, cheia de Amor”10. Contemplar a Paixão de Cristo – na nossa meditação pessoal, ao lermos o Evangelho, na Via Sacra… – faz-nos um bem enorme.
Imaginamo-nos a nós mesmos presentes entre os espectadores que foram testemunhas daqueles momentos. Ocupamos um lugar entre os Apóstolos durante a Última Ceia, quando Nosso Senhor lhes lavou os pés e lhes falou com aquela ternura infinita, no momento supremo da instituição da Sagrada Eucaristia. E somos um daqueles três que adormeceram no Getsêmani, quando o Senhor mais esperava que o acompanhássemos na sua infinita solidão; um dos que presenciaram a sua prisão; um dos que ouviram Pedro jurar que não conhecia Jesus; um dos que ouviram as falsas testemunhas naquele simulacro de julgamento e viram como o sumo-sacerdote rasgava as vestes ao ouvir as palavras de Jesus; um do meio da turba que pedia aos gritos a sua morte e dos que o contemplaram suspenso da Cruz do Calvário. Situamo-nos entre os espectadores e vemos o rosto deformado, mas nobre, do Senhor, a sua infinita paciência…
Com a ajuda da graça, podemos tentar ir mais longe e contemplar a Paixão tal como a viveu o próprio Cristo11. Parece-nos impossível consegui-lo e sempre será uma visão terrivelmente pobre em comparação com a realidade, com o que de fato sucedeu, mas para nós pode ser uma oração de extraordinária riqueza. São Leão Magno diz que “quem quiser de verdade venerar a Paixão do Senhor deve contemplar de tal maneira Jesus crucificado com os olhos da alma, que chegue a reconhecer a sua própria carne na carne de Jesus”12.
Que experimentaria a santidade infinita de Jesus no Getsêmani, assumindo todos os pecados do mundo, as infâmias, as deslealdades, os sacrilégios…? Que solidão a sua diante daqueles três discípulos que levara consigo para que lhe fizessem companhia, e que por três vezes encontrou dormindo? Ele também vê, em todos os séculos, esses amigos seus que adormecerão nos seus postos, enquanto os inimigos permanecem em vigília.
III. PARA PODERMOS CONHECER e seguir o Senhor, devemos comover-nos ante a sua dor e desamparo, sentir-nos protagonistas, não apenas espectadores, dos açoites, dos espinhos, dos insultos, dos escarros, dos abandonos, pois foram os nossos pecados que o levaram ao Calvário.
“Quereria sentir o que sentes, Senhor, mas não é possível. A tua sensibilidade – és perfeito homem – é muito mais aguda que a minha. Ao teu lado, verifico uma vez mais que não sei sofrer. Por isso me assusta a tua capacidade de dar tudo sem ficar com nada. Jesus, preciso dizer-te que sou covarde, muito covarde. Mas, ao contemplar-te cravado no lenho, “sofrendo tudo o que se pode sofrer, com os braços estendidos com gesto de sacerdote eterno” (Santo Rosário, Josemaría Escrivá), vou pedir-te uma loucura: quero imitar-te, Senhor. Quero entregar-me de uma vez, de verdade, e estar disposto a chegar até onde tu me queiras levar. Sei que é um pedido que está acima das minhas forças. Mas sei, Jesus, que te amo”13.
“Aproximemo-nos, em suma, de Jesus morto, dessa Cruz que se recorta sobre o cume do Gólgota. Mas aproximemo-nos com sinceridade, sabendo encontrar esse recolhimento interior que é sinal de maturidade cristã. Desta forma, os acontecimentos divinos e humanos da Paixão tomarão conta da nossa alma, como palavra que Deus nos dirige para desvendar os segredos do nosso coração e revelar-nos o que espera das nossas vidas”14.
A meditação da Paixão de Cristo trar-nos-á inúmeros frutos. Em primeiro lugar, ajudar-nos-á a ter uma grande aversão por todo o pecado, pois Ele foi trespassado por nossas iniqüidades, por nossos crimes é que foi torturado15. Jesus Cristo crucificado deve ser o livro pelo qual, a exemplo dos santos, leiamos continuamente para aprender a detestar o pecado e a inflamar-nos no amor de um Deus que nos amou tanto; porque nas chagas de Cristo leremos toda a malícia do pecado e as provas de amor que Ele teve conosco, sofrendo tantas dores precisamente para declarar quanto nos amava16.
E então sentiremos que “o pecado não se reduz a uma pequena «falta de ortografia»: é crucificar, rasgar a marteladas as mãos e os pés do Filho de Deus, e fazer-Lhe saltar o coração”17. Um pecado é muito mais do que “um erro humano”.
Os padecimentos de Cristo animam-nos a fugir de tudo o que possa significar aburguesamento, apatia, preguiça. Avivam o nosso amor e afastam a tibieza. Tornam a nossa alma mortificada, ajudam-nos a guardar melhor os sentidos.
Se alguma vez o Senhor permite doenças, dores ou contradições especialmente intensas e graves, ser-nos-á de grande ajuda e alívio considerar as dores de Cristo na sua Paixão. Ele experimentou todos os sofrimentos físicos e morais, pois “padeceu dos gentios e dos judeus, dos homens e das mulheres, como se vê nas criadas que acusaram São Pedro. Padeceu também dos príncipes e dos seus ministros, e da plebe… Padeceu dos parentes e conhecidos, pois sofreu por causa de Judas, que o atraiçoou, e de Pedro, que o negou. Além disso, padeceu tanto quanto o homem pode padecer. Pois Cristo padeceu dos amigos, que o abandonaram; padeceu na fama, pelas blasfêmias que se proferiram contra Ele; padeceu na honra, pelas irrisões e zombarias que lhe infligiram; nos bens, pois foi despojado até das vestes; na alma, pela tristeza, pelo tédio e pelo temor; no corpo, pelas feridas e pelos açoites”18.
Façamos o propósito de estar mais perto da Virgem nestes dias que precedem a Paixão de seu Filho, e peçamos-lhe que nos ensine a contemplá-lo nesses momentos em que tanto sofreu por nós.
(1) Impropérios, Ofícios da Sexta-feira Santa; (2) São Leão Magno, Sermão 47; (3) Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 95; (4) cfr. 1 Pe 2, 24; (5) cfr. 1 Cor 6, 20; (6) São João Crisóstomo, Homilias sobre São Mateus, 87, 1; (7) São Tomás, Sobre o Credo, 6; (8) citado por Santo Afonso Maria de Ligório, Meditações sobre a Paixão, I, 4; (9) Josemaría Escrivá, Caminho, n. 302; (10) Josemaría Escrivá, Sulco, n. 993; (11) cfr. R. A. Knox, Ejercicios para seglares, Rialp, Madrid, 1956, pág. 137 e segs.; (12) São Leão Magno, Sermão 15 sobre a Paixão; (13) M. Montenegro, Vía Crucis, XIª est.; (14) Josemaría Escrivá, É Cristo que passa, n. 101; (15) Is 53, 5; (16) Santo Afonso Maria de Ligório, op. cit., I, 4; (17) Josemaría Escrivá, Sulco, n. 993; (18) São Tomás, Suma Teológica, 3, q. 46, a. 5.
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