7º Domingo do tempo comum
A primeira leitura da Missa mostra-nos Davi fugindo do rei Saul pelas terras desérticas de Zif1. Uma noite, em que o rei descansava no meio dos seus homens, Davi infiltrou-se no acampamento com o seu amigo mais fiel, Abisai. Viram Saul dormindo, no meio das tropas, tendo a lança cravada no chão à sua cabeceira. Abner e a sua gente dormiam ao redor. Abisai disse a Davi: Deus entregou hoje o teu inimigo às tuas mãos. Vou, pois, cravá-lo na terra com uma só lançada; não será preciso um segundo golpe. A morte do rei era, sem dúvida, o caminho mais curto para Davi se livrar para sempre de todos os perigos e chegar ao trono; mas ele escolheu pela segunda vez2o caminho mais longo e preferiu perdoar a vida de Saul. Davi aparece-nos nesta e em muitas outras ocasiões como um homem de alma grande, e com este espírito soube ganhar primeiro a admiração e depois a amizade do seu inimigo mais ferrenho. E ganhou, sobretudo, a amizade de Deus.
O Evangelho da Missa3 também nos convida a ser magnânimos, a ter um coração grande, como o de Cristo. Manda-nos bendizer aqueles que nos amaldiçoam, orar pelos que nos injuriam…, praticar o bem sem esperar nada em troca, ser compassivos como Deus é compassivo, perdoar a todos, ser generosos sem calculismos. E termina com estas palavras do Senhor: Dai e ser-vos-á dado: uma medida boa, apertada, sacudida, transbordante, será derramada no vosso seio. E alerta-nos: Na mesma medida com que medirdes, sereis vós medidos.
A virtude da magnanimidade, muito relacionada com a da fortaleza, consiste na disposição de acometer coisas grandes4, e São Tomás chama-a “ornato de todas as virtudes”5. É uma disposição que acompanha sempre uma vida santa.
O magnânimo – magna anima, alma grande – propõe-se ideais altos e não se encolhe perante os obstáculos, as críticas ou os desprezos, quando é necessário enfrentá-los por uma causa elevada. Não se deixa intimidar de forma alguma pelos respeitos humanos e pelas murmurações; importa-lhe muito mais a verdade do que as opiniões, freqüentemente falsas e parciais6.
Não podemos ser pusilânimes (pusillus animus), almas pequenas e de ânimo encolhido. “Magnanimidade: ânimo grande, alma ampla, onde cabem muitos. É a força que nos move a sair de nós mesmos, a fim de nos prepararmos para empreender obras valiosas, em benefício de todos. No homem magnânimo, não se alberga a mesquinhez: não se interpõe a sovinice, nem o cálculo egoísta, nem a trapaça interesseira. O magnânimo dedica sem reservas as suas forças ao que vale a pena. Por isso é capaz de se entregar a si mesmo. Não se conforma com dar: dá-se. E assim consegue entender qual é a maior prova de magnanimidade: dar-se a Deus”7. Nenhuma manifestação maior do que esta: a entrega a Cristo, sem medida, sem condições. Por isso os santos foram as almas mais magnânimas que já houve.
II. A GRANDEZA DE ALMA demonstra-se também pela disposição de perdoar o que quer que seja das pessoas próximas ou afastadas. Não é próprio do cristão ir pelo mundo afora com uma lista de agravos no coração8, com rancores e recordações que lhe amesquinham o ânimo e o incapacitam para os ideais humanos e divinos a que o Senhor nos chama.
Assim como Deus está disposto a perdoar tudo de todos, a nossa capacidade de perdoar não pode ter limites, nem pelo número de vezes, nem pela magnitude da ofensa, nem pelas pessoas das quais nos advém a suposta injúria: “Nada nos assemelha tanto a Deus como estarmos sempre dispostos a perdoar”9. Na Cruz, Jesus cumpria o que havia ensinado: Pai, perdoa-lhes. E imediatamente a desculpa: porque não sabem o que fazem10. São palavras que mostram a grandeza de alma da sua Humanidade Santíssima. E no Evangelho da Missa de hoje lemos: Amai os vossos inimigos…, orai pelos que vos caluniam11.
Jesus sempre pediu esta grandeza de alma aos seus. O primeiro mártir, Santo Estêvão, morrerá pedindo perdão para aqueles que o matam12. E nós não saberemos perdoar as pequenezes de cada dia? E se alguma vez chega a difamação ou a calúnia, não saberemos aproveitar a ocasião para oferecer a Deus algo tão valioso? Melhor ainda seria se, à imitação dos santos, nem sequer chegássemos a ter que perdoar – por nunca nos sentirmos ofendidos.
Por outro lado, perante o que vale a pena (ideais nobres, tarefas apostólicas e, sobretudo, Deus), a alma grande dá do que tem sem reservas: tempo, esforço, recursos. Entende em todo o seu alcance as palavras do Senhor: por muito que dê, receberá mais; o Senhor lançará no seu seio uma medida boa, apertada, sacudida, transbordante…13
Propor-se coisas grandes para o bem dos homens, ou para remediar as necessidades de muitas pessoas, ou para dar glória a Deus, pode levar por vezes ao dispêndio de grandes somas e a pôr os bens materiais a serviço dessas obras grandes14. E a pessoa magnânima sabe fazê-lo sem se assustar; avaliando com a virtude da prudência todas as circunstâncias, mas sem ter o ânimo encolhido.
As grandes catedrais são um exemplo de épocas em que havia muito menos meios humanos e econômicos do que agora, mas em que a fé talvez fosse mais viva. São prova de que os bons cristãos sabiam desprender-se daquilo que possuíam de mais precioso para honrarem o Senhor ou a Virgem Maria…, e foram generosos nas suas contribuições e esmolas tanto para o culto divino como para aliviar os seus irmãos mais necessitados, promovendo obras de educação, de cultura, de assistência. E numa sociedade que não sabe conter os seus gastos supérfluos e desnecessários, observamos freqüentemente como muitas obras de apostolado e aqueles que dedicaram a elas a vida inteira não raramente se vêem sujeitos a privações e a contínuos adiamentos desses trabalhos por falta de meios.
A grandeza de alma que o Senhor nos pede levar-nos-á, pois, a ser muito generosos com o nosso tempo e com os nossos meios econômicos, mas também a fazer com que haja muitos outros que se sintam impelidos a cooperar para o bem dos seus irmãos, os homens. A generosidade sempre aproxima de Deus; por isso, muitas vezes, este será o melhor bem que poderemos fazer aos nossos amigos: fomentar-lhes a generosidade. Esta virtude dilata o coração e torna-o mais jovem, com maior capacidade de amar.
III. SANTA TERESA insistia muito em que convém não apoucar os desejos, pois “Sua Majestade é amigo de almas animosas”, empenhadas em metas grandes, como fizeram os santos, que não teriam chegado tão alto se não tivessem tomado com firmeza a decisão de chegar à santidade, contando sempre com a ajuda de Deus. E queixava-se dessas almas boas que, mesmo com uma vida de oração, em vez de voarempara Deus, ficam grudadas à terra “como sapos”, ou se contentam com “caçar lagartixas”15.
“Não deixeis que a vossa alma e o vosso ânimo se encolham, porque poderão perder-se muitos bens… Não deixeis que a vossa alma se esconda num canto, porque, ao invés de caminhar para a santidade, terá muitas outras imperfeições mais”16. A pusilanimidade, que impede o progresso no relacionamento com Deus, “consiste na incapacidade voluntária de conceber ou desejar coisas grandes, e fica estratificada num espírito raquítico e rasteiro”17. Manifesta-se também numa visão pobre dos outros e daquilo que podem chegar a ser com o auxílio divino, ainda que de momento sejam grandes pecadores.
O pusilânime é homem de horizontes estreitos, resignado à comodidade de deixar as coisas correr: não tem ambições nobres. E enquanto não vencer esse defeito, nunca se atreverá a comprometer-se com Deus mediante um plano de vida espiritual ou uma responsabilidade apostólica: tudo lhe parecerá excessivamente grande – porque ele está encolhido.
A magnanimidade é fruto de um íntimo relacionamento com Jesus Cristo. Uma vida interior rica e exigente, repleta de amor, sempre se faz acompanhar de uma disposição de empreender grandes tarefas por Deus. É uma atitude habitual que se baseia na humildade e que traz consigo “uma esperança forte e inquebrantável, uma confiança quase provocativa e a calma perfeita de um coração sem medo”, que “não se escraviza perante ninguém: é servo unicamente de Deus”18.
O magnânimo atreve-se ao que é grande porque sabe que o dom da graça eleva o homem a tarefas que estão acima da sua natureza19, e as suas ações ganham então uma eficácia divina: esse homem apóia-se em Deus, que é poderoso para fazer nascer das pedras filhos de Abraão20; e é audaz nas suas iniciativas apostólicas, porque é consciente de que o Espírito Santo se serve da palavra do homem como instrumento, mas que é Ele quem aperfeiçoa a obra21. Caminha e trabalha com a segurança de quem sabe que toda a eficácia procede de Deus, pois é Ele quem dá o crescimento22.
A Virgem Maria conceder-nos-á a grandeza de alma que Ela teve nas suas relações com Deus e com os seus filhos, os homens. Dai e dar-se-vos-á… Não nos apouquemos, não nos encolhamos. Jesus presencia a nossa vida.
(1) 1 Sam 26, 2; 7-9; 12-13; 22-23; (2) cfr. 1 Sam 24, 1 e segs.; (3) Lc 6, 27-38; (4) São Tomás,Suma Teológica, 2-2, q. 129, a. 1; (5) ib., a. 4; (6) R. Garrigou-Lagrange, Las tres edades de la vida interior, vol. I, pág. 316; (7) Josemaría Escrivá, Amigos de Deus, n. 80; (8) cfr. Josemaría Escrivá, Sulco, n. 738; (9) São João Crisóstomo, Homilias sobre São Mateus, 19, 7; (10) Lc 23, 34; (11) Lc 6, 27-28; (12) cfr. At 7, 60; (13) Lc 6, 38; (14) cfr. São Tomás, Suma Teológica, 2-2, q. 137; (15) Santa Teresa, Vida, 13, 2-3; (16) idem, Caminho de perfeição, 72, 1; (17) Gran Enciclopédia Rialp, verbete Fortaleza, vol. X, pág. 341; (18) J. Pieper, As virtudes fundamentais, pág. 278; (19) São Tomás,Suma Teológica, 2-2, q. 171, a. 2; (20) cfr. Mt 3, 9; (21) cfr. São Tomás, Suma Teológica, 2-2, q. 171, a. 2; (22) cfr. 1 Cor 3, 7.
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